março 31, 2008

Ficção #3

(Sobre alguém que ainda não conheço.)

Tento domar o cabelo com um elástico em frente ao espelho. Estou sozinha em casa mas é como se ele espreitasse sobre o meu ombro. Primeiro, sinto-me tentada a sorrir. Mas logo repito, em silêncio, as palavras com que me enfeitiçou mais uma noite. Decorei cada sequência para poder repeti-la na minha cabeça até à náusea, até me sentir livre outra vez. Sei de cor todas as mentiras que me disse até agora, todas as promessas ocas que esbanjou em todas as noites que estivemos juntos. Como se me pudesse iludir durante mais que umas horas. E mesmo essas horas sou eu que mas permito, como um barco frágil navegando desgovernado nesse mar de palavras que já não sei se ouvi ou se inventei. Quando mais me olho no espelho, mais suspeito que está a acontecer outra* vez. E, como em todas as vezes, planeio sair**. Receio que, como sempre, vá sair tarde demais e preparo-me para os estilhaços do que aí vem.

* a corda ainda prende o pé mas eu já fugi daqui tantas vezes
** ainda é cedo muito tarde p'ra me vires buscar

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