março 22, 2009

Ficção #15

Ela consulta o relógio pela enésima vez naquela tarde. Está estendida sobre a cama, deixa a cabeça pender em direcção ao chão, tem os olhos abertos mas é como se não visse nada. O resto da casa está em silêncio, apenas consegue ouvir o cortinado que avança e logo se retrai com a passagem do vento quente, vozes de mulheres que sobrem a rua com os livros debaixo dos braços. Sabe que não devia estar ali, sabe que há compromissos que a esperam no outro lado da cidade mas não consegue impor a sua vontade à vontade do próprio corpo e deixa-se ficar. Do terceiro piso do prédio em frente ouve-se o som de uma guitarra. Se ela pudesse levantar-se e chegar perto da janela, veria um rapaz de guitarra ao peito, o olhar perdido sobre os telhados habitados por gatos vadios e velhos esqueletos de antenas. Não saberia distinguir se ele tocaria de amor ou de saudade mas poderia tentar adivinhar-lhe a intenção no olhar.

O relógio não lhe mostra o que ela quer ver. Ela supõe que irá falhar o seu compromisso e antecipa já a desilusão que irá provocar. Pensa em chegar à janela, para perceber se é só imaginação o que vê neste momento: um homem a descer a rua, mãos nos bolsos, um olhar triunfante que faz baixar os olhares das mulheres com quem se cruza; um homem encostado a uma ombreira da porta, com a sua vida dentro de uma pequena mala, esperando pacientemente que ela chegue; um homem que, estando perto dali, se desviara do seu caminho e quisera apenas olhar-lhe a janela aberta, em silêncio, sem nunca se denunciar. Mas não há sinal desses homens em lado nenhum. Ela sabe mas isso não a impede de os sonhar todas as noites, cruzando-se em intrincadas histórias surreais, transformado-lhe o sono em horas de agitação. São demasiados corações em trânsito, pensa ela, que espera apenas a colisão com um corpo celeste.

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